Monstros em cena |
Ontem o Canal Viva me deu mais um presente. Depois da reprise de Vale Tudo, Roque Santeiro e Os Maias, vem mais uma delícia que eu tenho o prazer de esperar para assistir - coisas da cultura da televisão. É Engraçadinha, seus amores e seus pecados.
A primeira vez em que essa minissérie foi ao ar, em setembro de 95, eu estava completando 21 aninhos. Lembro-me, e é provável que sempre lembrarei, das sensações que esta obra me causou.
Eu pouco conhecia Nelson Rodrigues. Já estava fazendo Teatro Escola Macunaíma mas não tinha lido ou assistido muitas obras dele. Sabia de sua existência.
Eu, aos vinte |
Mas eu era uma menina de 20 anos quando a minissérie começou, dois a mais apenas do que a personagem principal quando a história começa. E as chamadas da TV me atiçavam a curiosidade.
Aquela música, aquelas cores, a cara de Alessandra Negrini por quem fui loucamente apaixonada por anos, a narração das chamadas, aquele cheiro de pecado bulinavam com a menina que havia chegado em São Paulo havia apenas um ano.
Eu esperava ansiosamente pela estreia e depois dela esperava cada capítulo como quem espera o pão.
Curtia sozinha toda aquela lascívia, toda aquela sexualidade, aquela transgressão, aquele ar de bordel e sala de aula que a direção da obra cinematográfica trazia do universo rodrigueano.
Apaixonei-me pelo elenco da primeira fase. Desde então sou fã inveterada de Ângelo Antônio, meu querido primo Sílvio. Maria Luíza Mendonça, sempre soberba fazendo papeis estranhos (e apenas estes) também me encantava com sua Letícia misteriosa. Mas Alessandra Negrini era a deusa. Seus cabelos negros, sua boca vermelha e suas ancas largas como seu sorriso obsceno mexiam com minha libido e com minha relação com o trabalho de atriz.
Comprei o CD da trilha, passei a venerar Piazzola.
Tentei comprar Asfalto Selvagem (romance original com a história de Engraçadinha), mas não consegui.
Entrei no universo de Nelson, assim, desejando ser ao mesmo tempo Engraçadinha e Alessandra Negrini.
Na segunda fase, porém, um desencanto. Achei o elenco muito ruim, exceto Paulo Betty que me convencia a continuar assistindo a minissérie. Era, provavelmente o luto pela saída de Negrini. Não gostava de Mila Cristhi e seu namoradinho. A parte dos rebeldes sem causa, achei chaaata. Só o namoro de Engraçadinha, já dona Raia, me fez lembrar os arroubos de outrora. Pedro Paulo Rangel, que eu viria a amar com o especial Lisbela e o Prisioneiro (não o filme, mas o especial da Rede Globo) e cujo amor se multiplicaria infinitamente em Som e Fúria, fazendo o impagável espectro de Oliveira, sim, este mesmo PPP mostrava sua genialidade como ator, mas num personagem que em nada atraia, volto a repetir, uma menina de 20 anos.
Ontem, fazendo tricô ao lados dos meus filhos, esperei saudosamente pela reprise desta minisserie, que eu já vi outras vezes, inclusive porque gravei no videocassete em outra oportunidade de reapresentação. Mas, prestes a completar 38 anos, quase vinte anos depois do primeiro encontro, vivo a deliciosa sensação do tempo passando. Revi a menina fogosa, ousada, com fome de vida, sexo, teatro e liberdade que aportara em São Paulo, vinda de uma Salvador já, então, meio árida.
Todo esse blablabla é pra dizer que ontem eu me dei conta do quanto esta obra me formou. Do quanto fui impulsionada pelo desejo latente que ela exalava. Do quanto o trabalho de um grupo de artistas, de Nelson Rodrigues a Alessandra Negrini, de Piazolla a Denise Saraceni, é o que de fato, ao lado das experiências concretas nos define, molda aquilo que estamos sendo e construindo.
Raia, Engraçadinha |
Como a Engraçadinha de Cláudia Raia, atriz que eu admiro imensamente, já estou na minha segunda fase e poder fazer um flash back de minha própria história a partir da reprise de uma história eterna, como é eterna toda obra de arte, é para mim a certeza de que de tudo na vida que nos acontece, a experiência artística é a mais impactante, a mais relevante e talvez - eu ouso dizer - a única que faz sentido.