Há quase um ano que a região de Vitória da Conquista sofre
com a pior estiagem dos últimos 30 anos. Além do racionamento, da alta dos
preços na feira, da ‘vida seca’ que se impõe na zona rural, paira sobre a terra
rachada uma tristeza de dar dó.
Mas é justamente numa semana de intensas chuvas que chega
aos palcos de nossa cidade o espetáculo da Cia de Teatro Primeiro Ato,
inspirado na obra de Graciliano Ramos, Vidas
Secas. O espetáculo vem ‘a mando’ do projeto Verão Cênico, como os leitores
já devem estar sabendo.
Mais uma noite de plateia lotada, mesmo com o tempo fechado.
É uma lindeza ver esse teatro lotado toda quarta-feira, chova ou faça lua!
E vamos ao espetáculo. Logo de entrada o cenário simples nos
dava o tom da encenação.
E como começou abruptamente o espetáculo hoje!!! Sem sinais,
sem vinheta. Isso acabou por atrapalhar um pouco o começo do espetáculo. A
plateia ainda conversava com empolgação quando a cena inicial já rolava, com
uma projeção que tinha narração e que a gente não conseguiu acompanhar bem. Aos
poucos – bem devagar – a plateia começou a silenciar, mas sobrou ainda aquele
celular ligado e aquele povo, educado pela audiência de televisão que tem o
péssimo hábito de ficar batendo papo atrás da gente, bem no meio do espetáculo.
E acham que porque estão sussurrando, não estão incomodando. Incomoda, gente.
Quer conversar? Não entra! Não se pode conversar, nem baixinho, numa sala de
cinema ou numa sala de espetáculo. Ali é um espaço público e é imprescindível
que você respeite o espaço do outro. Sala de espetáculo não é lugar para bater
papo. E tenho dito!
Voltemos à cena.
O espetáculo dirigido por Devilles, mentor da Cia que há
mais de vinte anos produz teatro no extremo norte da Bahia, apresenta uma
sucessão bem trabalhada de elementos cênicos. Uma luz bem recortada, sem cor
que ilustra a secura da vida daquelas personagens. Algumas vezes sinto que a
luz antecipa a cena, mas na maioria das vezes ela ajuda a compor imagens fortes
cuja estagnação dá o tom do espetáculo. Os cortes são precisos, a direção
aparece cuidadosa e primorosa nas marcações das cenas e no diálogo entre os
elementos essenciais.
Imagem disponível no blog da Cia |
Apesar de gostar do espetáculo, não posso deixar de
sinalizar que na transposição da obra literária para a obra cênica, sinto que a
profundidade da construção das personagens, tanto cada uma delas em si mesma,
quanto na relação entre elas, fica prejudicada. O problema maior parece estar
na soberania da história contada, isso que chamamos em dramaturgia de fábula.
Sim, estão presentes as personagens e as histórias vividas por elas, mas sinto
falta do peso daquelas subjetividades, daquelas humanidades que são tão intensas
no romance e que parecem um pouco mais superficiais no palco. Aí não saberia
apontar se o problema está no trabalho dos atores, especificamente ou na
direção destes. Helder Ferrari que dá vida ao Fabiano tem uma presença de cena
inegável, no entanto reluz uma juventude que talvez não remeta ao Fabiano da
minha distante leitura da obra original. Ronali Barbosa, apesar de demonstrar
potencial, acaba por sombrear Sinhá Vitória com sua voz frágil. Mesmo que isso
diminua o envolvimento da plateia com o espetáculo, quero deixar registrado que
é visível o potencial dela e dos demais integrantes do elenco, que com a
prática dos palcos, com certeza produzirão trabalhos de inegável qualidade.
Devilles ousa em cena ao trazer ao palco uma criança e uma
cadela. Essa opção pode ser um problema ou um achado numa montagem e neste caso,
considero que foi um achado. A cadela é uma diva. Não se assusta com a plateia,
permanece em cena com uma tranqüilidade impressionante e comove com seu olhar
de bicho, convocando a todos da plateia a ler aquela cachorra em cena. Não é à
toa que ela se chama Baleia na vida real. E é isso que nos chama para dentro da
cena: a Baleia verdadeira. Ruan Medrado e Wagner Libório também cativam pelo
que são de verdade e vê-los em cena nos atrai e nos seduz. O diretor usa isso a
seu favor, ou que o diga, em favor da cena.
Insisto na questão do aprofundamento das relações entre os
personagens, porque acredito que seja algo que se consiga com mais estrada, com
mais apresentações. A cena da morte de Baleia, eu me lembro que quando li
fiquei quase um mês de luto, atravessada por aquela dor. Na peça acho que a
cena foi desperdiçada, breve, simples. Talvez seja uma demanda minha
especificamente, mas senti falta da dor de Fabiano – que na minha leitura sofre
com a necessidade de matar a cachorra – a dor dos meninos. Senti falta do
silêncio de Fabiano, de sua profundeza dura, mais do que de sua grosseria.
Senti falta do vazio de Sinhá Vitória, de sua obsessão pela cama de tiras de
couro. Em termos de enredo, estava tudo lá, mas faltaram as sensações profundas
que essa história promove.
A cena final é uma preciosidade. Os quadros recortados pela
luz dos personagens esvaziados pelo eterno ciclo das estiagens. Aquele silêncio
ensurdecedor. Aquele tempo dilatado. Estes elementos sintetizam todo o sumo da
obra literária e da obra cênica. Ficaria tranquilamente sem a projeção final. Para
mim ,o peso do silêncio e a dor dos personagens me bastariam. (Pois, então, eu
que dirigisse minha peça, né não? Eita povo pra se meter no trabalho dos
outros. Eu sei de tudo isso, gente.)
E, não podemos deixar de sinalizar que Maria Bethânia
cantando canções da seca é sempre uma dor profunda.
Que fique registrado, por fim, que estas palavras revelam todo
o meu deleite e, sobretudo, respeito com a obra assistida. Obviamente eu
poderia lançar mão do argumento mais fácil e hipócrita (e na minha opinião
improdutivo) de que para uma peça do interior da Bahia está muito bom. Prefiro
arriscar-me a comentar o espetáculo como ele merece ser comentado: como um
espetáculo profissional, com carreira, temporadas e viagens. Prefiro fazer uma
leitura sincera e legítima do uso dos códigos teatrais, dentro do que me é
possível como espectadora e como estudiosa da linguagem. Acredito que essa é a forma
mais honesta de dizer o quanto eu gostei de ter assistido a este espetáculo.
Outro dado que deve ser levado em consideração, sobretudo
neste contexto, é o importante trabalho que o grupo realiza em sua região com
montagens que visam à formação de plateia não só em Juazeiro como nas cidades
vizinhas. O grupo tem um relevante trabalho de arte-educação, construindo e
circulando espetáculos que são transposições de obras literárias. Vidas Secas, por exemplo, é o último
espetáculo da trilogia da seca, composta também pelos espetáculos O Quinze, inspirado na obra de Raquel de
Queiroz e Morte e Vida Severina, de
João Cabral de Melo Neto.
Adaptação da Cia 1º Ato para O Quinze de Rachel de Queiróz |
Encenação de Morte e Vida Severina - poema dramático de João Cabral de Melo Neto |
Uma vigorosa produção sobre a temática da seca, a
partir de autores que conhecem de perto esta realidade, encenada por artistas
também acostumados às dores da seca que encontraram nesta experiência um
instrumento de diálogo com o público local. Inteligente e sagaz estratégia de
sobrevivência. Podemos observar no blog da Cia 1º Ato o que se vê em cena: que existe um importante trabalho com jovens atores da cidade e região.
Pois então. Estou aguardando fotos da sessão de ontem para
ilustrar melhor este post. Fiquem com um bate-papo que essa trupe simpática e
batalhadora teve com a gente no nosso DEZ MINUTOS COM... clicando aqui.
E, nunca é demais lembrar, comente à vontade. O que mais
vale, no blog, no teatro, no boteco e na vida é bater um bom papo e trocar uma
ideia. Sinta-se em casa!
Arte do Espectador saúda Baleia - Foto Hannah Abnner |
Cia 1º Ato e equipe do Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima - Foto Hannah Abnner |
E por falar em casa, já está sabendo da novidade? Clique e conheça o projeto TEATRO-ESCOLA CASA DO REBANHO.
FICHA TÉCNICA:
VIDAS SECAS
Adaptação do Romance homônimo de Graciliano Ramos
Adaptação: Antônio Carlos dos Santos
Direção: Devilles
ELENCO:
Helder Ferrari
Ronali Barbosa
Ruan Medrado
Wagner Libório
Davi Monteiro
Maurício Fábio