Nem sei bem por onde começar, se pelo começo ou pelo fim.
Digo isso, porque estou saindo, quentinha, do encerramento do Festival e porque tudo o que eu havia planejado escrever sobre ele durante estes dias, talvez tenha virado de cabeça pra baixo. E esta sensação sempre será a que eu busco em se tratando de experiência estética. É o FLYING THE DRAGON (cavalgando o dragão) dos viciados.
Mas, vamos ser didáticos que o leitor não é obrigado a saber a priori do que se trata.
Neste ano de fim de mundo, o tal do 2012, a Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer (ou seja, metade do mundo!) de Vitória da Conquista, minha terra natal e atual, realizou a segunda edição de um supostamente modesto Festival de Cenas Curtas. Sim, supostamente modesto, porque mesmo reconhecendo seu tímido tamanho em termos de orçamento e de alcance (aí, claro que ele é modesto), mas em se tratando do que ele mobilizou nestes três dias, em termos de conceitos, práticas, pesquisa e debate, digo sem medo de errar que ele foi monstruoso!
Talvez inadvertidamente o público tenha se dirigido ao simpático Teatro Carlos Jehovah acreditando que assistiria ao desfile de cenas bem preparadas tecnicamente, com alguma timidez de grupo do interior que talvez sinta falta de dialogar com as tendências mundiais e que se entendendo como cidade do interior da Bahia, no Nordeste do Brasil, ache de bom tamanho fazer aquele teatro seguro, que por décadas (ou séculos) já tenha mostrado que funciona. Que nada! O que se assistiu ali foi um vigoroso desfile de ousadia, criatividade e experimentação.
Mas, calma, vamos por parte, como diria Jack, não o Nicholson, mas o estripador! Argh!
Primeiro quero falar da relevância deste Festival aberto de Cenas Curtas numa cidade que em outros aspectos já se mostrou inteiramente antenada ao que há de mais contemporâneo, sem perder a leveza e graça do interior que é. Em Conquista tem o vaqueiro na feira e o restaurante internacional. Tem o terminal de saída pras roças e tem o aeroporto que em breve se modernizará. Tem as ruas largas de andar e pedalar - onde se vê vez ou outra um cavalo a galopar - e tem semáforos, ciclovias, carros importados. Tem tudo pra todo mundo e isso faz dela uma das mais belas cidades do Brasil atualmente.
Este Festival de Cenas Curtas resolve dois problemas que a cidade talvez enfrente hoje: da forma como a Secretaria é organizada (sendo o teatro uma coordenação) resolve porque é um evento de pequeno porte e baixo custo, tanto para quem o idealiza ( A Prefeitura) quanto para quem participa (os grupos). O outro, não digo problema, mas questão que se enfrenta com um Festival de Cenas Curtas e não um Festival de Teatro, do ponto de vista tradicional de espetáculos de duração aproximada de 1 a 2 horas, é que este espaço revela-se como um espaço ideal para a experimentação, para a variação estética, para a divulgação e implementação da pesquisa.
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Circo do Soleinildo - Cia Operakata de Teatro |
Ora, a segunda edição do Festival já vem com a chancela da primeira, onde foi premiado o espetáculo O
Circo do Soleinildo da Cia. Operakata de Teatro. Depois deste lançamento a cena virou peça e tem feito um brilhante e invejável trajeto em Festivais Nacionais e Internacionais. É um marco de respeito como aurora deste festival.
O sucesso da Operakata é o sucesso do teatro de Vitória da Conquista e isso se revela na qualidade e sobretudo na criatividade e na ousadia das cenas inscritas na segunda edição.
É pois, a cena curta, o espaço onde se pode ousar com mais segurança. Um espetáculo completo requer uma série de elementos dos quais a cena pode abrir mão, de certa forma. Não significa, porém, talvez o contrário, que seja mais fácil. Resolver, sobretudo do ponto de vista da dramaturgia, uma cena em 15 ou 20 minutos é um desafio!
Nos primeiros dois dias o Festival revelou de alguma forma sinais sobre um imaginário da cidade do ponto de vista de uma unidade estética. Ao final destes dois dias, eu acreditava que havia uma recorrência de signos, na forma de organizá-los, que revelava uma característica da cidade. Algumas cenas chegavam a ser muito semelhantes, na ambientação, no modelo de instalação da cena: trilha sonora de abertura, uma luz taciturna sobre um cenário antigo, figurino de época, uma unidade cromática com um elemento contrastante - geralmente um fundo marrom ou preto com um elemento em vermelho e então, o elemento que se impunha impiedoso: a hegemonia do texto. A maioria das cenas, do ponto de vista da visualidade, servia de ilustração para o estabelecimento pleno e indiscutível do texto. Grandes diálogos, imponentes reflexões ditas como diálogo interno do personagem ou através da voz em off. O que senti particularmente na maioria das cenas dos dois primeiros dias foi essa extenuante hegemonia do texto dramático, do ponto de vista mais tradicional que possa dizer.
Isso, imagino eu, vem de uma tradição de um teatro clássico, naturalista que se fecha num modelo e que invade nosso horizonte de expectativas através do cinema e da telenovela. Claro que eu identifico nos grupos de teatro um trato com os elementos próprios da cena e uma tentativa de transgressão, mas sempre a serviço do texto dramático.
Um bom sinalizador desta tendência e desta possível unidade estética, na falta de um termo melhor, a que me refiro, está no fato de que nenhuma peça (talvez
Ossossosso e
Vivido que foram apresentadas no último dia) tenha sido idealizada para arena total, mas sempre trabalhando com a frontalidade da cena, muitas delas apostando, inclusive, na quarta parede. No máximo o que se explorou foi o modelo de semi-arena, como foi o caso de algumas delas, como
Ela-Outro-Ele e
Lua de Luiz, para ficar apenas nessas duas.
Outra impressão que me deu ao final do segundo dia foi que o teatro de Conquista parece não ser afeito a comédias, ou ao menos ao humor. Tirando, até este momento, a cena
Ela-Outro-Ele, todas as cenas eram dramas e dramas dos mais pesados. Nada contra este ou aquele gênero, por favor! Estou apenas tentando fazer um diagnóstico a partir do que me ofereceu como dados concretos o Festival.
Mas eis que veio o terceiro e último dia.
Neste momento o Festival mostrou a que veio. Mostrou ainda mais porque é importante do que já havia se mostrado nos primeiros dias, quando se revelou importante espaço de encontro, de socialização dos produtos, de diálogo.
No terceiro dia, no entanto, o chão sumiu.
Sem nenhum drama fechado no sentido de gênero dramático (todo teatro é drama, sabemos todos disso), avançamos de
Lua de Luiz, com seus estímulos diversos e bem cuidados para
Vivido, um corajoso solo no melhor estilo Teatro Essencial, com uma utilização dos signos teatrais de modo articulado e fruto de evidente pesquisa de cena, dramaturgia e composição corporal visivelmente presentes no trabalho da intérprete e no seu diálogo com os poucos, mas eloquentes signos da cena.
Para coroar a noite,
Ossossosso, uma cena repleta de elementos dos mais diversos da contemporaneidade reunidos num consciente discurso político, estético, filosófico que nem por isso deixou de lado o frescor da criação artística e a relação tempo-espaço própria e específica do evento teatral. Se estavam ali o telão, a TV, o facebook, Kubrick, a cidade de Vitória da Conquista, estavam também elementos físicos e concretos da cena: a luz (negra), o casal de intérpretes, o osso, a corda, enfim, uma profusão de elementos, de estímulos multimídia que para o bem ou para o mal, mexeram com quem estava na plateia. Para dialogar com a cena, provoco: você não precisa curtir, mas inevitavelmente compartilhou daquele momento e ele provocou naquela privilegiada plateia que talvez tenha acompanhado como eu os três dias de Festival, sentimentos novos, confusos, desagradáveis talvez, desestabilizantes: "mas cadê o texto? cadê o autor? cadê o diretor? cadê a interpretação?" E o que se busca numa experiência estética senão o desconforto? A pergunta? A dúvida? A derrocada das certezas estagnantes?
O Festival mostrou que podem conviver numa mesma cidade um teatro que se entende como uma reprodução bem conduzida de uma linguagem experimentada, testada e aprovada como me parecem ser as cenas que tendem para uma estética realista, com um teatro que quer se perguntar a que veio. Um teatro que quer saber o que é, mas aqui, SER no sentido mais contínuo possível: um teatro gerúndio que não é, mas que está sendo. Um teatro que não apenas É, porque ele também já Foi e sobretudo ele sempre SERÁ. Um teatro em movimento, em contínua pesquisa e aperfeiçoamento.
O que fica de lindo para mim e de alguma forma acredito, para o corpo de juradas que debateu exaustivamente todos os elementos premiáveis e todas as questões propostas pelas cenas, é que é preciso aceitar, reconhecer, legitimar e incentivar a provocação que veio dos artistas. Um cenário plural onde a experiência e a juventude dialogam, se encontram, se debatem, competem, mas avançam num pensamento contemporâneo na ordem do dia do mundo das cenas.
Eu não estou dizendo com tanto elogio que não houve problemas. Claro que houve e sempre haverá. Uma cena ou outra com problemas técnicos, um excesso aqui outro acolá. O que eu quero dizer é que o Festival potencializa muito mais o que há de acerto do que o que há de tropeço.
Conquista, no ano de 2012 - antes do mundo acabar - dá seu recado ao mundo do teatro: nós estamos na área. Se derrubar é pênalti.
E que lindo gol fará o teatro de Conquista daqui pra frente, preparando-se para se tornar daqui a alguns anos, quem sabe, uma referência na linguagem do ponto de vista da experimentação e da pesquisa. E que lindo espetáculo ganha a cidade, que terá uma inquestionável ação pedagógica e política, sempre pelo viés estético, com espetáculos dessa natureza.
Ao fim e ao cabo, para quem debate o que se viu e o que se vê, quem poderá seguramente definir o que é teatro, o que é bom ou o que é ruim, o que define o trabalho do ator/atriz, o que é talento, o que é qualidade? Quem tem certeza de que tem a resposta para isso, eu só lamento, parou no tempo, fechou as portas, cerrou as cortinas! Água parada não faz bom marinheiro. Fazer por séculos um modelo único só pra dormir tranquilo achando que acertou é bem pouco para uma existência. Eu quero é o risco.
Agradeço imensamente pela oportunidade de viver este que para mim é um divisor de águas na cidade, produzido não pelo órgão que viabilizou o Festival, não pelo corpo de juradas que se prestou a debater, discutir e de alguma forma traduzir em notas todas essas questões tão amplas e subjetivas, mas nem por isso impossíveis de serem conceituadas, também não apenas pelos artistas e suas criações, mas sim pelo encontro dessas três instâncias e sobretudo pelo público que - eu vi e posso afirmar - se divertiu e se incomodou, se emocionou e se chateou, mas que fez deste Festival um promissor evento que mostrou ao poder público local o potencial das artes cênicas da cidade e a importância de investir no crescimento e no aprimoramento de ações e políticas públicas que coloquem o artista da cena num lugar digno de onde ele possa investir na sua formação e na sua pesquisa.
Parabéns a todos os participantes, ao público, aos organizadores.
Sugestões para o próximo, eu as tenho aos montes e sei que o leitor também. O espaço para comentários está aí, de coração aberto, com afeto e sempre pelo bem da arte e de todos nós, porque porrada a gente já leva demais de quem não é artista, né, então, vamos tentar fazer com que o diálogo seja uma ferramenta de construção e afeto, sempre afeto.
Até o próximo!
Drica
II FESTIVAL DE CENAS CURTAS DE VITÓRIA DA CONQUISTA:
Realização: Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer através da Coordenação de Teatro
De 29/11 a 01/12/2012
Local: Teatro Municipal Carlos Jehovah
Corpo de Juradas:
Adriana Amorim - Atriz, Profª e Coordenadora da Área de Teatro e Dança da UESB/Jequié
Cibele Sá - Atriz e Coordenadora de Teatro da cidade de Boa Nova
Nehle Franke - Diretora teatral e Diretora da Fundação Cultural do Estado da Bahia
PREMIAÇÃO:
FIGURINO: Vitória Vieira, com a cena Lua de Luiz
CENÁRIO: Adriano Siqueira, com a cena Dentro da Noite
ATRIZ: Iziz Mueller, com a cena Vivido
ATOR: Francisco Carlos, com a cena Lua de Luiz
DIREÇÃO: Patrícia Moreira, com a cena: Ato Único
3ª cena: Ato Único - Cia Ditirambo de Teatro e Ossossosso - Grupo Coletivo
2ª cena: Vivido - Grupo agulhas - Núcleo de experimento do corpo cênico
1ª cena: Ela, Outro, Ele - Grupo Criativo Pajaco capo.