sábado, 10 de dezembro de 2011

INDO EMBORA DE VOLTA

Hoje é oficialmente meu último dia em Salvador. Foram, nesta última edição, doze anos e três meses morando nesta cidade que, por ora, não amo mais.

Há um misto de alegria, alívio, ansiedade, expectativa e, por que não, medo, tristeza e saudade. Sim, um shake de sentimentos.

Quando partimos de um lugar, inevitavelmente nos aventuramos em outro. Ah, quem me dera sair de um e poder não ir para outro. Experimentar um não -lugar para descansar. Mas, não posso. Não aqui neste mundo limitado.

Arrumar as malas é tarefa dolorosa. Se deixo Salvador, essa terra que se estraga, também deixo minha casa, meu apê que tem tanta história pra contar e que deu tanto trabalho pra comprar.

Deixo as janelas imensas e o taco de madeira que tanto amo.
Deixo o pequeno quintal, portal de alegria e estádio de futebol de meu pequeno.
Deixo o vento e a lua que entram pela janela.
Deixo as portas coloridas e a grande estante de livros.

Mas também deixo o aperto, a sujeira de apartamento velho, o guarda roupa caindo aos pedaços. Os tacos soltos que machucam o pé e a falta de sinal do celular. As grades que o ladrão me fez colocar, deixo também.

O corpo se acostuma à casa. O braço viciado ao interruptor leva tempo para aprender o novo lar.

Os bibelôs parecem temer que não haja espaço para eles, tantos que são, lembranças de viagens nossas e de amigos. Desejei tanto este dia chegar e hoje vivo-o como se estivesse fora de mim.

Mudarão a padaria, o mercadinho, o açougue. Mudará o ponto de ônibus. 
A escola das crianças, mudará também.
E o caminho feito já às cegas para a Escola de Teatro não servirá mais.

Mudará o número de telefone fixo. As revistas e cobranças não sabem mais pra onde ir e eu vivo o presente reconhecendo-o como memória.

E ao pegar  BR-116, esse monstro que me assusta, eu volto para o ponto de onde parti há 22 anos, criança ainda, para construir minha história.

Estudos, experiências, amigos inesquecíveis, dores, amores, prazeres.

Volto e minha casa já não é mais a mesma. É uma grande e bela casa, que meus pais reformaram com esmero, dedicação e trabalho, muito trabalho. Meus sobrinhos, nasceram e cresceram. A cidade, que era província, virou metrópole. Eu que era menina virei mulher. Meus cabelos enbranqueceram, minha pele amolece e a calma se instala aos poucos.

Assim como hoje, um dia eu soube, lá em janeiro de 1990 que era véspera da partida. No auge dos meus 15 anos outrora completados, eu sonnhava com o mundo que me esperava, sem ter a menor noção de como ele era. Só sabia que ele era novo e isso era vibrante.

Hoje, conheço  o caminho para o qual me conduzo. Já andei naquelas ruas, já comprei naquelas vendas. Já senti o cheiro daquelas árvores daquela praça com nome daquela santa.

Conheço o coração que me espera. De mãe que rezou pela minha volta durantes essas duas décadas, mesmo sabendo que essa volta era uma possibilidade remota. Conheço a irmã que me recebe com pureza nos olhos e um sorriso que não se cansa.

Conheço a tartaruga que desfila sua inteligência.

Conheço cada canto marcado pela presença de meu pai, que não esperou meu retorno.

Fazer as malas sempre será um ato poético.

Como o teatro que se renova sempre no fazer, partir ou voltar será sempre uma transgressão, um salto no abismo, um grito solto no ar. Por mais ensaios de marcação, por mais reconhecimento de cenário, figurino, luzes e adereços, a hora da estreia e cada nova sessão será sempre seguida de um friozinho na barriga, de mais uma ousadia da criação, de mais uma exposição e desafio.

Vou de volta ao que sempre fui e só volto EU, porque me recriei.

Viver assim, consciente de tudo o que não se sabe, dói, mas pelo menos é uma dor sabida.

Volto para a caatinga de Elomar, para os agudos de Xangai, para a poesia de Camilo de Jesus Lima, para o nervo de Glauber Rocha, para a melodia de Gilberto Gil. Volto para a neblina e para o biscoito avoador, volto para céu de Central do Brasil.


Aos amigos, muitos e tão queridos que fiz aqui, meu muito obrigada, minha eterna gratidão e lembrança e minhas portas abertas para recebê-los.

Despeço-me com as palavras de Elomar, que no momento descrevem e transcrevem todo meu sentimentos de catingueira errante, na belíssima canção  APERGUNTA:

"Só a terra que você dexô
Quinda tá lá num ritirou-se não.
Os povo, as gente, os bicho, as coisa tudo...
Uns ritirou-se in pirigrinação
Os otro, os mais véio, mais cabiçudo
Voltaro pru qui era: pru pó do chão"

"Mãe lua magrinha qui está no céu:
Será qui cuano eu chegue in minha terra
Ainda vou encontrá o qui é meu?"


E volto, para a cidade escondida atrás da Serra, que no final da viagem se revela e me encoraja a pedir sem meias palavras, do alto do Periperi, tal qual o Cristo de Mário Cravo:

"Abraça-me de volta, Conquista!"