sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ENGRAÇADINHA, EU?

Monstros em cena

Ontem o Canal Viva me deu mais um presente. Depois da reprise de Vale Tudo, Roque Santeiro e Os Maias, vem mais uma delícia que eu tenho o prazer de esperar para assistir - coisas da cultura da televisão. É Engraçadinha, seus amores e seus pecados.

A primeira vez em que essa minissérie foi ao ar, em setembro de 95, eu estava completando 21 aninhos.  Lembro-me, e é provável que sempre lembrarei, das sensações que esta obra me causou.

Eu pouco conhecia Nelson Rodrigues. Já estava fazendo Teatro Escola Macunaíma mas não tinha lido ou assistido muitas obras dele. Sabia de sua existência.

Eu, aos vinte


Mas eu era uma menina de 20 anos quando a minissérie começou, dois a mais apenas do que a personagem principal quando a história começa. E as chamadas da TV me atiçavam a curiosidade.

Aquela música, aquelas cores, a cara de Alessandra Negrini por quem fui loucamente apaixonada por anos, a narração das chamadas, aquele cheiro de pecado bulinavam com a menina que havia chegado em São Paulo havia apenas um ano.

Eu esperava ansiosamente pela estreia e depois dela esperava cada capítulo como quem espera o pão.

Curtia sozinha toda aquela lascívia, toda aquela sexualidade, aquela transgressão, aquele ar de bordel e sala de aula que a direção da obra cinematográfica trazia do universo rodrigueano.

Apaixonei-me pelo elenco da primeira fase. Desde então sou fã inveterada de Ângelo Antônio, meu querido primo Sílvio. Maria Luíza Mendonça, sempre soberba fazendo papeis estranhos (e apenas estes) também me encantava com sua Letícia misteriosa. Mas Alessandra Negrini era a deusa. Seus cabelos negros, sua boca vermelha e suas ancas largas como seu sorriso obsceno mexiam com minha libido e com minha relação com o trabalho de atriz.

Comprei o CD da trilha, passei a venerar Piazzola.

Tentei comprar Asfalto Selvagem (romance original com a história de Engraçadinha), mas não consegui.

Entrei no universo de Nelson, assim, desejando ser ao mesmo tempo Engraçadinha e Alessandra Negrini.


Na segunda fase, porém, um desencanto. Achei o elenco muito ruim, exceto Paulo Betty que me convencia a continuar assistindo a minissérie. Era, provavelmente o luto pela saída de Negrini. Não gostava de Mila Cristhi e seu namoradinho. A parte dos rebeldes sem causa, achei chaaata. Só o namoro de Engraçadinha, já dona Raia, me fez lembrar os arroubos de outrora. Pedro Paulo Rangel, que eu viria a amar com o especial Lisbela e o Prisioneiro (não o filme, mas o especial da Rede Globo) e cujo amor se multiplicaria infinitamente em Som e Fúria, fazendo o impagável espectro de Oliveira, sim, este mesmo PPP mostrava sua genialidade como ator, mas num personagem que em nada atraia, volto a repetir, uma menina de 20 anos.

Ontem, fazendo tricô ao lados dos meus filhos, esperei  saudosamente pela reprise desta minisserie, que eu já vi outras vezes, inclusive porque gravei no videocassete em outra oportunidade de reapresentação. Mas, prestes a completar 38 anos, quase vinte anos depois do primeiro encontro, vivo a deliciosa sensação do tempo passando. Revi a menina fogosa, ousada, com fome de vida, sexo, teatro e liberdade que aportara em São Paulo, vinda de uma Salvador já, então, meio árida.

Todo esse blablabla é pra dizer que ontem eu me dei conta do quanto esta obra me formou. Do quanto fui impulsionada pelo desejo latente que ela exalava. Do quanto o trabalho de um grupo de artistas, de Nelson Rodrigues a Alessandra Negrini, de Piazolla a Denise Saraceni, é o que de fato, ao lado das experiências concretas nos define, molda aquilo que estamos sendo e construindo.


Raia, Engraçadinha


Como a Engraçadinha de Cláudia Raia, atriz que eu admiro imensamente, já estou na minha segunda fase e poder fazer um flash back de minha própria história a partir da reprise de uma história eterna, como é eterna toda obra de arte, é para mim a certeza de que de tudo na vida que nos acontece, a experiência artística é a mais impactante, a mais relevante e talvez - eu ouso dizer - a única que faz sentido.





sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A BELEZA DE ONDE VIEMOS - na Beleza Bahia

Faz tempo que publiquei na coluna BELEZAS INUSITADAS da Beleza Bahia, mas só agora tive tempo de trazer o texto pra cá.

O texto está no portal da Revista, acesse clicando aqui e vá até a página 88. Tem a revista nas bancas, também, caso vocês gostem de ler no papel.

Espero que gostem:

A BELEZA DE ONDE VIEMOS



Quando eu era adolescente eu era bem magra, os cabelos bem cheios e cacheados, praticamente um cogumelo. As pernas finas como uma seriema. Tinha a voz estridente, falava muito e muito alto. Falava rápido e andava devagar. Ouvia constantemente: “Fala baixo, menina” ou “Anda rápido, menina”. Mas, no fundo meus maiores problemas eram meu grande nariz avantajado e minha boquinha pequena e afinada. Na frente do espelho, eu puxava e repuxava o nariz pra tudo que era canto, tentando fazê-lo ficar menor, mas nada. E sonhava com aquilo que me tornaria a pessoa mais feliz do mundo: uma cirurgia plástica no nariz. Eu só esperava ter idade – e dinheiro – para realizar este sonho. A idade viria, eu estava certa. Já a grana...
Os anos foram passando, eu saí de casa aos 15 anos e fui me encontrando em situações que me revelavam muito mais do que o espelho. No colégio interno onde fiz o ensino médio, se encontravam dezenas de adolescentes de diferentes partes do estado da Bahia (Colégio Técnico da Fundação José Carvalho, em Pojuca) e a profusão de sotaques e prosódias me levou a uma forte descoberta: Sim! Eu tinha sotaque! É, porque até ali, eu achava que todo mundo tinha sotaque, menos os conquistenses. Claro, eu nunca tinha confrontado meu sotaque com outros. Primeira descoberta de traços de identidade, sem, ainda ter noção dessa experiência.
Mais adiante, assisti a uma matéria de jornal na TV que tratava de traços físicos de identidade. Uma moça, com um nariz grande como o meu, dizia, feliz, ao repórter: “Eu sei que meu nariz é grande, se comparado à maioria, mas isso não me incomoda. Esse nariz me diz das minhas origens, me diz dos povos dos quais herdei traços e comportamentos. Mexer nesse nariz, seria negar minhas origens.” Claro que não foi exatamente assim, porque eu não seria louca de decorar uma fala na TV por tantos anos. E claro que ela não estava fazendo um tratado contra cirurgias plásticas. Mas trago este exemplo, porque neste momento, lembro-me de ter me levantado, ido ao espelho e pela primeira vez em aproximadamente 18 anos, ter sido simpática com meu nariz.



Isso porque eu já desconfiava que a família do meu pai apresentava fortes traços árabes. Na verdade desconfiei porque muita gente perguntava e julgava evidentes os traços em meu rosto. Já aos 20 anos, em São Paulo trabalhando numa grande rede hoteleira praticamente todos os hóspedes europeus perguntavam de onde eu era, sempre esperando um lugar do Oriente Médio e se espantavam (e até se decepcionavam) quando eu dizia: Vitória da Conquista, interior da Bahia.
Hoje, muitos anos depois, estou de volta ao lugar onde nasci. De volta para ficar (eu acho) e jamais poderei traduzir em palavras o que é voltar para o lugar ao qual pertenço. Indo ao Distrito de origem da família de meu pai (José Gonçalves, conhecido como Guigó – eu nunca tinha visto um lugar ter apelido) eu vejo tantos, mas tantos traços parecidos com o meu. Tantos narizes grandes e bocas pequenas e – pasmem – sinto uma grande alegria nestes que outrora eram meu grande problema estético. Alegria, porque me identifico com aquelas pessoas, porque me encontro com minhas origens, meus princípios e entendo tanto de mim mesma. Fico curiosa porque gostaria de pesquisar sobre a influência árabe neste pedaço de Caatinga no Sudoeste da Bahia. E entendo que era preciso eu viver essas quase quatro décadas para entender e viver este sentimento.
Ouço as canções de Elomar Figueira Melo, a voz encantadora de Xangai e meu coração se alegra, porque sei que suas canções, letras e melodias falam da terra de onde vim. E, depois de tantos anos cruzando o Brasil, trocando de endereço, profissão, cidades e estados, volto para o lugar onde vivi boa parte de minha infância. Percorro as mesmas ruas e a memória me aquece.
O lugar de onde viemos, quer seja o lugar físico ou o lugar simbólico (a família, os amigos, as associações, escola, igreja, coral) é um importante e belo pedaço da gente que às vezes abandonamos ou, pelo menos, negligenciamos. Um retorno delicado às nossas origens pode ser aquilo que nos falta em momentos onde temos aquela sensação de estarmos perdidos, soltos no universo, sem eira nem beira, sem perspectiva. Talvez esteja na volta ao passado, a reconstrução segura do nosso futuro.
Reencontrar pessoas que apresentem traços físicos semelhantes aos nossos, muitos ou poucos (um sorriso largo, uma perna bem torneada, uma sobrancelha farta) pode ser um acolhimento silencioso que o outro nem sabe que está fazendo, mas que estando à nossa frente, lembrando traquinagens do passado, ou perguntando por aquele fulano de quem nunca mais se teve notícia, nos diz afetuosamente: “Você não está sozinho”.
Agora, se neste encontro com familiares e amigos pintar a sessão álbum de fotos, se prepare porque o riso e as lágrimas vão ter presença garantida. Fotos que a gente jamais se lembraria de ter tirado. Pessoas ao nosso lado que a gente se quer lembrava que existiam. Lugares que nem existem mais. Árvores que viraram prédios. Praças que viraram estacionamentos. Está tudo lá, vivo na fotografia, registrado na memória, preso a um passado idílico, um passado perpétuo que nos configura e nos fortalece.
Garanto que voltar ao espelho depois de reencontrar os seus, será uma experiência reveladora. E se você fez uma plástica ou outra, não se sinta menosprezado por este artigo, pois não estou necessariamente falando de traços físicos (envelhecemos, e isso não deixa de ser uma mudança). Há lago neste espelho que agora te olha, que bisturi nenhum tira e que só os seus olhos poderão reconhecer. Não precisa dizer pra mim, nem pra ninguém da alegria de se sentir parte de uma família, de um grupo de amigos, de um passado coletivo. Basta valorizar o sorriso que com certeza virá te visitar assim que você colocar a cabeça no travesseiro, nesta noite que talvez seja a primeira dessa sua nova fase, desse seu novo futuro. E por falar nisso, feliz 2012 para todos nós. Que ele seja assim, simples, inusitado e belo, serenamente belo.