sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Iauretê: Teatro de raiz, corpo e voz

A ansiedade era grande, devido à mobilização causada pelas instalações na entrada do teatro.

Uma, referendada em tradições e elementos icônicos da cultura pataxó, outra com o pé na modernidade, projetava na parede da entrada uma obra com imagens de índios transitando entre seus costumes e garrafa Pet de Coca-Cola.

O toré de entrada foi simpático, mas a adesão do público, tímida. Os músicos, empunhando flauta, tambor e vozes, entoavam belíssimos cantos tribais. Os mestre de cerimônia, já nossos conhecidos, estavam a caráter (ou quase!) e divertiam o público que chegava timidamente.
Maria Janaína e seu canto - Foto: Aldren Lincoln

Lá dentro, um belo cenário com uma luz modesta nos esperava. Não fosse o tapete persa ou indiano que destoava do universo criado sobre o palco, o ambiente onde os músicos executavam a precisa trilha, estava quase que completamente integrado à proposta cênica. Talvez me falte algum dado na leitura do tapete, aí eu peço sinceras desculpas pelo deslize.

Pela plateia entra uma bela índia, de presença impactante e voz vigorosa. Seu canto e sua chegada marcante seguram bem a plateia.

A cena no palco, no entanto, se enfraquece com a dificuldade de compreensão do texto falado pela atriz. O barulho do ar condicionado e a evidente diferença da voz de Maria Janaína quando está cantando para quando está falando, foram fazendo com que o espectador aos poucos fosse se perdendo da cena. Contudo, mesmo sem o apoio dos significados daqueles significantes, a cena mantinha a sedução. A luz muito delicada (e ao mesmo tempo forte) colaborava para a predominância dos signos visuais sobre as palavras ditas e pouco compreendidas pela plateia.

Victor Kizza - O homem-onça em foto de Aldren Lincoln

O impacto da cena completou-se com a entrada vigorosa do ator Victor Kizza, com uma presença de palco comovente. A princípio também pouco se entendia do que ele falava, mas uma vez mais a força da cena parecia prescindir desta premissa. A construção da personagem era tão intensa, que mesmo pouco entendendo daquele Português 'envenenado' que era lindamente dito por aquele ser da natureza, com formas ora humanas ora 'bichescas' a plateia ficava completamente encantada com aquele corpo escultural, construindo diante dos nossos olhos aquele ser híbrido, forte mas ao mesmo tempo dono de uma simpatia e de um carisma inusitados. Custo a acreditar que alguém tenha resistido àquele sorriso de menino naquele corpo de guerreiro.

Era tão preciosa a presença corporal de Victo Kizza que até mesmo seu suor derretendo a maquiagem era parte da magia da cena. A luz precisa de Everton Machado, dialogava com aquela construção e assim, entre  índia e onça, a cena foi-se desenvolvendo.

Talvez em alguns momentos, a plateia se pegasse querendo algo mais, mas acho que nunca é muito se dispor a receber aquilo que a cena tem para dar e aos poucos foi exatamente o que fui fazendo: permitindo-me deixar levar pela proposta. Fui sentindo e experimentando a cena nos detalhes de cada elemento que ela me oferecia, desde o mais simples som ao vivo (ou não) desde uma troca de luz até os detalhes das interpretações daqueles irmãos em cena.

Dirigidos pela mãe, filho e filha vão ao palco celebrar o hibridismo, a miscigenação deste povo tão negro-índio-luso. Assim, só podemos compreender Iauretê como um canto de louvor aos laços familiares que nos unem, quer sejam eles o de mãe e filhos, como nesta peça, quer seja o vínculo ontológico, antropológico, religioso e cultural que nos une a todos nós, filhos destes que aqui estavam, daqueles que aqui chegaram e mais aqueles que para cá foram trazidos. Uma celebração às nossas origens.

Um Guimarães Rosa trazido ao palco, traído pela dificuldade de compreensão do texto falado, mas emancipado na linguagem da cena, plena, bela e absoluta.

Minhas saudações ao Grupo de Teatro Palmares Iñaron e a seu importante e belo trabalho.

Confira o gostoso bate-papo com essa galera no DEZ MINUTOS COM, CLICANDO AQUI.



Iauretê - Grupo de Teatro Palmares Iñaron:

Direção e Adaptação: Lia Spósito
Direção Musical: Bira Reis
Orientação Artística: Antonio Jorge Godi
Elenco: Maria Janaína e Victor Kizza
Percussionistas: Alessandro Mônaco e Marcos Antonio Costa
Designer de Luz: Everton Machado