Por muito tempo debatemos na nossa área de pesquisa em arte, quer seja nos encontros da ABRACE - Associação Brasileira da Pesquisa em Artes - quer seja nas nossas salas de mestrado e doutorado, ou ainda nos botecos para onde vamos geralmente depois da aula, sobre o embate cotidiano do universo da pesquisa acadêmica, com o universo da arte.
E debatemos sobre muitos aspectos.
Sobre o uso de parâmetros de um para medir o outro. Sobre a possibilidade, a necessitade e mesmo sobre a vontade que temos, nós artistas, de acharmos uma equação possível para a prática da pesquisa científica a partir de nosso próprio universo, que é o universo da criação, da transgressão, da desobediência que eu insisto em proclamar, mas, sobretudo da subjetividade. Como fazer pesquisa acadêmica, com rigor científico, se estamos trabalhando com subjetividades?
Ora, pra mim, se não parece simples é ao menos cabível supor que a única saída é repensarmos os conceitos científicos e acadêmicos. Mais do que endurecermos as pesquisas em artes, seria o caso de amolecermos a ciência e não entendam aqui amolecer num sentido de torná-la pior, menos importante ou menos exigente. É só rever os parâmetros.
Posso parecer ingênua, mas não estou louca, muito menos só. Numa das disciplinas de doutorado, estudamos inúmeros textos que tratam sobre a necessidade urgente de novos paradigmas para a pesquisa científica e a maioria destes textos indica que se a ciência se inspirasse nos modelos de pesquisa da experiência artística, estando diretamente associada ao que existe de mais vital que é a própria contigência de estar vivo, o universo científico não teria se perdido num emaranhado de fórmulas prontas e equações duras onde muito pouca coisa cabe.
Onde quero chegar?
Acabo de receber um parecer técnico sobre uma proposta de publicação da minha dissertação de mestrado, onde discuto sobre os aspectos artísticos, mais especificamente cênicos e dramatúrgicos do futebol, que a mairia de vocês estpa careca de saber.
Neste parecer, para minha surpresa, alcancei a tão temida por nosso gênio maior, o centenário Nelson Rodrigues, unanimidade.
Sim, eu sou uma unanimidade!
Num universo de 1 a 7, eu consegui a proeza de tirar a menor nota (1) em todos, eu disse todos os 7 quesitos de avaliação do projeto.
Segue a análise do parecerista:
Consistência do tema e do conteúdo com a área do saber: 1
Relevância técnico-científica: 1
Criatividade e inovação da abordagem: 1
Relevância das referências e fundamentação teórica: 1
Coerência entre resultados e problematização da pesquisa: 1
Clareza e objetividade da linguagem: 1
Avaliação Global da qualidade da obra: 1
E segue com o parecer:
O MANUSCRITO EM QUESTÃO, ALÉM DE VÁRIOS ERROS ORTOGRÁFICOS E DE DIGITAÇÃO, FRASES TRUNCADAS, ETC, NÃO REÚNE CONTEÚDO TÉCNICO CIENTÍFICO SUFICIENTE PARA A DEMONSTRAÇÃO DA TESE. OS CONCEITOS TEÓRICOS UTILIZADOS SÃO DEFICIENTES, SUPERFICIAIS, E NÃO SUSTENTAM AS ARGUMENTAÇÕES DO AUTOR, FRAGILIZANDO TODO O CORPO DA PESQUISA. O TRABALHO NÃO POSSUI RIGOR CIENTÍFICO NECESSÁRIO A UM TEXTO ACADÊMICO COM PRETENSÃO DE PUBLICAÇÃO. A OBRA EM TODA SUA EXTENSÃO NÃO ALCANÇA MINIMAMENTE OS QUESITOS DE QUALIDADE NECESSÁRIOS A UMA OBRA ACADÊMICA. NOSSO PARECER NÃO É FAVORÁVEL À PUBLICAÇÃO.
Gente.
É claro que eu entro num edital de publicação sabendo que eu posso ser contemplada ou não.
É claro que, apesar de ter sido aprovada com distinção por um Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas que tem a nota máxima no conceito da CAPES (6,0) eu reconheço que a obra tem suas fragilidades, afinal de contas trata-se de uma dissertação de mestrado, que se configura ainda como introdução à pesquisa acadêmica.
É claro que eu ouviria de bom grado as considerações do parecerista, caso as houvesse. Mas, honestamente, não há! O que há, a meu ver, é uma completa tirania de grupos que se engessaram no poder e que se sentem no direito de avaliar a produção de uma pesquisadora séria como provavelmente eles são, mas que teve a infeliz ideia de atuar num ramo marginal, subjulgado, despreazado e por que não, temido pelo poder hegemônico de algumas áreas do conhecimento.
Mas, vamos por partes, como diria Jack:
Como se avalia a consistência do tema e do conteúdo neste caso? Não é consistente falar de cena, de drama e de rito a partir da análise do futebol?
Por que não?
Pra quem não?
E a relevância técnico científica? Estamos à beira de uma Copa do Mundo em nosso país ou é impressão minha? O país respira futebol ou eu estou louca? Ah, isso é um assunto do mundo cotidiano. Não cabe na perfeição do universo teórico e acadêmico.
Não há criatividade e inovação na abordagem geral? Ok, me aponte então as obras que tratam do tema, porque eu as procurei e não as encontrei. Também avisa aos participantes dos eventos que eu frequento e diga a eles que eles enlouqueceram, que este tema não é inovador nem entusiasmante, como eles insistem em definir minha pesquisa.
E a relevância das referências e da fundamentaçaõ teórica? Ora, eu posso ter até escrito a chuva de abobrinhas como o parecer faz crer, mas vamos lá que eu me referencio em José Miguel, Wisnik (porque insisto em ler pesquisadores nacionais), Patrice Pavis, Johan Huizinga, Gerd Bornheim, Luigi Pareyson e aquele menino das 3 unidades, como é o nome dele? Ah, Aristóteles.
Oh, talvez me falte ter citado filósofos e não só gente de teatro.
Talvez me tenham faltado os europeus todos, os franceses sobretudo. É, aquela meia dúzia de nomes que os mais de 6 bilhões de habitantes do planeta têm obrigatoriamente que ler e que citar.
O texto corrido que joga todo meu sério trabalho na lama, também é pra mim fator de estranhamento, e infelizmente não é o brechtiano.
Eu acredito que por mais que pareça uma forte pancada na minha vaidade pessoal (e talvez o seja em alguma medida) o espanto e a indignação são justamente contrários à ideia de vaidade pessoal. Eu acho que esse parecer não é direcionado a mim como pessoa, ou como pesquisadora em particular, mas a toda um área de conhecimento.
Desculpem-me todos, mas eu não me julgo ser a nota mínima em todos os quesitos. Posso não estar dentro do que a instituição que lançou o edital espera, mas o que se diz nesse parecer é muito mais do que isso. Posso ser recusada por outros tantos editais, de outras tantas insituições e acho até justo, porque reconheço muitas fragilidades do meu trabalho. Mas o que fizeram aqui, foi excessivo.
Foi quase uma performance!!!
E este não é o grito de uma moleca que não sabe perder.
Não, não é.
Já perdi muitas coisas na minha vida.
Testes de aptidão, audições, editais, prêmios, concursos.
E aprendi muito com essas derrotas.
E sei que vou perder outras tantas coisas.
Já perdi um bebê na barriga e já perdi meu pai.
Mas tem um senso de justiça do qual eu não abro mão.
Não me revoltei quando perdi meu pai, porque sei que foi justo ele dedicar quase 70 anos de sua vida ao cigarro e morrer de câncer no pulmão.
É justo.
E este parecer não é justo!
Retomando o título deste post, o risco de se misturar ciência e arte não está na nossa prática, tão legítima, tão suada de construirmos nosso universo acadêmico em Arte, no qual inclusive o Brasil tem grande relevância, sobretudo a Bahia e o nosso Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, uma referência mundial em pesquisa em arte.
O nosso risco, pareceiros, é cotidiano, é ordinário. Nós o experimentamos sempre e estamos com ele durante toda a nossa prática criativa, sobretudo a teatral e a futebolística.
O grande risco de se misutar ciência e arte pode estar na dança das cadeiras, pode estar na desestruturação passível e possível de acontecer no universo acadêmico e em toda a sociedade.
E à desestruturação... ah, a essa nem todos estão acostumados. Não como nós artistas, desestruturados e desestruturantes por natureza.
Mas, felizmente, somos um fato. Existimos e estamos aí, aqui, acolá, fazendo barulho, promovendo revoluções.
Não fosse isso, não mereceríamos tratamento como este que a mim foi dispensado e que, honestamente, não julgo ter sido pessoal.
Tem nada, não! Só não vou publicar minha pesquisa agora. Vou ali dar minhas aulas, montar meus espetáculos, fazer meu doutorado. Acariciar meus filhos, beijar meu marido.
Só não queria ficar calada. Atrizes não se calam!
Poderia terminar o texto com os passarões e passarinhos de Mário Quintana, mas vou ficar com a contudência da Poeta Pagu, pela cumplicidade do gênero (só há homens nas ilustrações, credo!) e pela insistência na delícia de sermos o que somos:
"Este crime, o crime sagrado de divergir e ser consequente, nós o cometeremos sempre!"
É Bolada, pesquisador-artista!!!
(Homenagem ao blog www.futeboldeartista.blogspot.com)
Dri, não sei se isso é previsto no edital, mas, se fosse você, pediria revisão da nota e análise de outro parecerista, poderia ser um bom tira-teima. Essas concorrências são uma bosta, justamente porque toda e qualquer competição, por mais que exista uma norma ou barema ou critérios em comum, fica balizada pela subjetividade (ela mesma, ora vejam!) de quem escolhe/seleciona. E aí, minha querida, haja jogo de poder de um lado e paciência do outro, para não jogar tudo pela janela e continuar persistindo e acreditando no que faz! Tem muito mais gente do seu lado, caminhando junto e isso importa mais do que nota! Seu livro é questão de tempo! Beijo-fã de todos os papéis que você exerce tão bem e que eu admiro muito :-)
ResponderExcluirPaula Lice
Colega, amiga e irmã de orientação. Obrigada pelas palavras. Estou me articulando para ver o que devo fazer oficialmente. Bjos, lindona.
ExcluirJuntos. Linda, Paulinha.
ResponderExcluirVocê pode levar qualquer coisa a sério, menos essas notas e esse parecer! Por favor.
ResponderExcluirFaça o que puder e nos dê notícias. Beijos
ResponderExcluirDando notícias: O projeto foi para outro parecerista, que fez um parecer bastante profissional, apesar de sua fala ainda sinalizar que talvez não seja alguém exatamente da área, mas sinto a dedicação pelo trabalho, o respeito pela autora e concordo com algumas coisas o que o parecer aponta. Infelizmente não publicarei o livro pela UESB, mas continuo na batalha. Vou publicar a dissertação online pela Universidade do Futebol, estou trabalhando nisso. Abraço e obrigada a todos pela atenção e pelo carinho.
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