Ler a história do teatro ocidental é ler a descrição do carnaval baiano. Lembro-me das primeiras aulas de Luiz Marfuz - Fundamentos do Espetáculo - onde ele descrevia as festas dionisíacas. Dizia que as pessoas passavam dias a brincar pelas ruas, cantando, dançando, usando fantasias para não serem descobertas. O sexo era livre e e a orgia comia solta (mesmo)!!!
Era o lado dionísiaco da existência, em oposição ao lado apolíneo.
Sempre pensei que o teatro deveria continuar dionisíaco, não apenas por apego ao nome do deus do qual é devoto, mas porque tornando-se deveras apolíneo como me parece ser hoje, perdeu boa parte de seu contato direto com o público.
Ver desfiles de carnaval no Rio de Janeiro, ou mesmo as imagens do carnaval de Veneza ou acompanhar a esbórnia das ruas de Salvador é meio que revisitar esse nosso vovô querido, o teatro do prazer e da participação popular.
Margot Berthold, em História Mundial do Teatro (2001) nos lembra:
"Os festivais rurais da prensagem do vinho, em dezembro, e as festas das flores em Atenas em fevereiro e março, eram dedicadas a Dioniso, deus do vinho. As orgias desenfreadas dos vinhateiros áticos honravam-no, assim como as vozes alteradas dos ditirambos e das canções báquicas atenienses. Quando os ritos dionisíacos se desenvolveram e resultaram na tragédia e na comédia, ele se tornou o deus do teatro.
O teatro é uma obra de arte social e comunal: nunca isso foi mais verdadeiro do que na Grécia Antiga. Em nenhum outro lugar, portanto, pôde alcançar tanta importância . A multidão reunida no theatron não era meramente espectadora, mas participante, no sentido literal. O público participava ativamente do ritual teatral, religioso, inseria-se na esfera dos deuses e compartilhava o conhecimento das grandes conexões mitológicas"
Acho que quando dançamos coreografias lindas e entoamos canções populares, inspiradas no cotidiano ou em pontos de candomblé, estamos de alguma forma compartilhando deste conhecimento, ainda que apenas de forma subjetiva. As canções genuinamente baianas como muitas de Brown, cantadas por Daniela, Margareth, ou mesmo os pagodes maravilhosos do Gerasamba e seus herdeiros, são sim, uma conexão com o sagrado. (Leia post sobre futebol e teatro: http://futeboldeartista.blogspot.com/2011/03/carnaval-alma-gemea-do-futebol.html)
Obviamente muita coisa mudou da Grécia Antiga pra cá. Sinto, porém, que no carnaval de Salvador estamos vivendo mudanças pequenas mas consideráveis. Não seriam os camarotes o apassivamento do folião? Ali, naquele espaço, além de se ausentar da festa em si, da comunhão e da união com o outro, o folião de camarote tem uma perspectiva que é a de olhar. Disputam a tapa um espaço na berada do camarote para ver a estrela passar. O camarote me parece uma outra festa, festa dentro da festa, dizem, mas para mim é mais do que isso, ou melhor, é o oposto disso, é uma festa fora da festa. Quem vai para o camarote, em termos de viver a festa, poderia ir para um camarote que estivesse na paralela. Sua relação com o carnaval de fato é puramente de espectador, Ele vê o carnaval passar e, quando passam as estrelas, volta para sua festa privê: sem o outro, sem sujeira, sem pobreza, sem troca. Só conforto!!! Enfim...
Amanhã carnaval e teatro se encontram no bloco Os Mascarados. Meu adorado Lenine estará em cima do trio e eu hei de estar lá, no meio da festa, vivendo este momento lindo de encontro e felicidade. Que as interpéries do carnaval não cheguem a mim. Elas existem, porque carnaval é vida e vida é risco. Quero o quenta da rua, quero o risco - mesmo que ele me assuste. Quero a sabedoria da pipoca, nem que seja de longe, como quando o Chiclete com Banana passa pela Avenida. A passagem do Chiclete merece (se é que num já tem) uma tese antropológica.
Que venha a Festa!!!
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário